Vivemos tempos difíceis, de emoções exacerbadas, de contras e a favor. Não quero usar este espaço para agradar. Não desejo a concordância. Busco causar reflexão. Pretendo proporcionar o benefício da dúvida em situações onde o juízo condenatório já está feito. Talvez seja o que me fez advogado e amante do Direito, instintivamente.

Um menino de 5 anos morreu em Recife. Miguel. A cena é a seguinte: a “patroa” da mãe do garoto, Sari, aparece num vídeo no elevador do prédio onde mora. Lá, ela e o garoto parecem conversar algo. Miguel demonstra recusar-se a sair do elevador e Sari aperta um botão. O elevador sobe, para num andar e a porta se abre. O menino não sai. A porta fecha, o elevador sobe mais, a porta se abre e o guri caminha para fora. Chegou a um determinado vão e acabou caindo do nono andar.

Façamos um esforço imaginativo. Possivelmente a mãe da criança, Mirtes, deve ter chegado na casa de Sari para trabalhar, trazendo Miguel. Deve ter argumentado que não tinha com quem deixá-lo e por isso o trouxe. Só por hoje. Sari, deve ter ficado constrangida, mas concordou. Quem, daqueles que demandam serviços domésticos, já não viveu situação semelhante? Sari poderia ter dito não. Mirtes voltaria para casa, sem o necessário dinheiro para, também, prove-lo. Vendo isso, diríamos que Sari foi inflexível, nada empática.

Todavia, Sari tomou uma decisão. Talvez a primeira decisão ruim do dia. Disse sim à Mirtes, mãe de Miguel. Deve tê-lo feito por conta do seu relacionamento de algum tempo. Passadas algumas horas, Sari está no elevador com Miguel. No entanto, não sabemos ainda a razão precisa pela qual Sari encontrava-se no elevador com Miguel. O que se vê, é Sari na porta do elevador dialogando com Miguel. Sari aperta o botão, sai e o elevador sobe com Miguel dentro. Podemos deduzir que Sari pediu para Miguel sair. Miguel, uma criança de cinco anos, pode ter feito birra para não sair. Sari poderia ter ficado mais tempo ali conversando com Miguel para convencê-lo. Poderia ter pegado o menino a força, tirando-o do elevador. A cena ficaria registrada pelas mesmas câmeras que gravaram que isso não ocorreu. Se o tivesse feito, possivelmente a vida de Miguel estaria salva e, neste momento, talvez as manchetes fossem no sentido de que a patroa maltratou uma criança, filho de sua empregada. Intolerável, diríamos.

Só que Sari tomou sua segunda decisão ruim naquele dia.

Sari, possivelmente impaciente, não quis ficar teimando com Miguel. Deve ter tentado assustá-lo. Apertou um botão para o elevador subir confiando que, teimoso, Miguel não desceria no andar solicitado. Que voltaria ao andar onde estava Sari e, quem sabe, Miguel, assustado por ter ficado só, sairia com Sari. A vida seguiria e nada de mal teria acontecido. Quem sabe?

Contudo, a única coisa que podemos afirmar com certeza é que Miguel não estava onde deveria estar. Miguel não deveria estar na casa de Sari com sua mãe. Nem com um parente qualquer de Mirtes. O lugar de Miguel era na creche, na escola. Porém, com a COVID as escolas e creches estão fechadas. Entretanto, Mirtes precisava trabalhar e Miguel, ainda pequeno, requer atenção. Num lugar civilizado, Mirtes não precisaria sair para trabalhar em meio à pandemia. Desvalida, o estado faria o seu papel e a proveria pelo tempo que durasse a “quarentena”. Infelizmente, esta não é a nossa realidade. Mirtes necessita trabalhar para não morrer e matar de fome.

Estado que não ampara os vulneráveis os mata.

Tirando a pandemia do cenário, provavelmente, ainda assim, Mirtes também não teria com quem deixar Miguel. No começo de março, poucos dias antes da decretação da calamidade sanitária, os professores da rede pública municipal de Recife decretaram greve por conta, dentre outras coisas, do déficit de vagas em escolas e da falta de professores. Mais um descalabro típico do poder público neste país.

Poderia ainda pintar os personagens deste drama com a cor de suas peles, para piorar a imagem e realçar ainda mais a catástrofe que se abateu sobre a vida dessas pessoas.

Notem como somos impactados pela ausência de políticas públicas e da inação do estado. Por conta disso, em muitas situações, vemo-nos tomando decisões ruins, sem muito pensar, sem muita reflexão.

Sari pagará pela sequência de suas escolhas ruins.

O estado continuará inerte.

Marcus Vinicius R. Gonçalves

Sócio da BRG Advogados. Professor de Compliance da Pós-Graduação da FGV-RJ. Ex-Presidente da Comissão de Estudos em Comunicação da OAB/SP. Presidente do ILADEM (Inst. Latino-Americano de Defesa e Desenvolvimento Empresarial).

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