“Ai meu Deus, se deu mal, prenderam em Curitiba o japonês da federal…”
Tenho dito e repetido que estamos doentes. Muito doentes. Sociedade e Estado doentes. O Estado Brasileiro vem dando amostras, cada vez mais, de que seu cinismo não tem limites.
Li ontem que prenderam o “japonês da federal”. O personagem, um dos ícones da ruidosa Lava Jato, entronizado como fantasia e tema de carnaval, acabou preso em cumprimento à condenação que sofrera, num processo em que respondia por, pasmem, corrupção. O processo tramitava desde 2003. “Apenas” 13 anos depois, cumpriu-se a sentença condenatória. Sentença esta que, ao arrepio da atual interpretação do STF, só foi cumprida após o trânsito em julgado.
E aqui começo minha análise. Reparem: para o japonês da federal, só após 13 tortuosos anos pelos tribunais, é que a sentença condenatória se fez realidade. Mas em outros casos, para espanto de qualquer um que tenha lido o “livrinho”, o STF tem dito que a presunção de inocência não é assim tão importante. Porém o dissera sufocado pelo clamor público.
Não é jurídico, é político.
Não pensem que estou aqui defendendo a impunidade. Muito ao contrário. Como jurista, ainda que não afeito ao processo penal, sei que não há razão jurídica para que um processo dessa natureza demore 13 anos.
O que quero debater é o cinismo do Estado.
Como pode um agente da lei, acusado de crime, ser o protagonista das ordens de prisão expedidas pelo judiciário? Ainda que falemos de presunção de inocência, em nome daqueles princípios da administração pública, como a moralidade, um agente “da lei” poderia continuar no exercício de sua função, com tal repercussão, sob a mesma espada que ergue?
Parece cínico. E é.
Todavia temos outras amostras desse cinismo. Sob o “clamor da plebe”, semana passada o Senado aprovou o agravamento da pena de estupro de vulnerável. O projeto se arrastava no Senado, mas, pirlimpimpim, foi aprovado. Agravou-se a pena e criou-se um novo tipo penal mais grave, o estupro coletivo. Pena de até 30 anos…
Na mesma esteira, instalou-se a histeria: pipocam denúncias de estupro e o Estado (autoridades policias, MP, Judiciário) começam a agir naquela dinâmica típica do açodamento, prendendo sem apurar. Notem, a reflexão que faço é a seguinte: problema (estupro) está aí, e não será prendendo sem apurar que vamos combatê-lo. Cadê a política pública de conscientização da liberdade sexual das pessoas, de que quando alguém diz não, nesses casos, quer dizer não mesmo? As delegacias já se prepararam para atender as vítimas desse tipo de crime com gente treinada para ouvir, apurar e amparar? Esse tipo de crime se combate com educação, conscientização. A cultura de tratar mulher como objeto sexual começa na tenra idade e é mostrada, de forma quase inocente, até em propaganda de cerveja, desodorante etc.
Querem mais? Dou-lhes. Recente pesquisa mostrou que nossas polícias são as mais letais do planeta e, pior ainda, são as que tem também o maior índice de letalidade entre seus membros. Em curtas palavras: nossa polícia mata muito e morre muito. Como assim? Morremos mais do que qualquer guerra mundo afora mata? Sim, sim, sim.
Entretanto, essas são só amostras do nosso cinismo. O Estado que age para aplacar um clamor, não tem uma estratégia, não pretende a cura, quer só amainar os ânimos. Joga pra galera.
Voltemos.
O que o japonês da federal que prendia (e agora está preso) tem com a lei nova sobre estupro no Senado,com a polícia que passa a prender por estupro sem apurar, com o juiz que mantém tal prisão etc? Reparem: é o Estado mostrado que não funciona, que só age compelido pelo “clamor”, que não se interessa em resolver nada apenas remendar.
Ao que me parece, a qualidade do estado está intimamente ligada a forma que escolhemos suas lideranças e aqueles que desenham (legalmente) sua atuação. Bingo!
Tenho recebido críticas porque “bato o bumbo” da mudança constitucional mais radical, ou seja, nova constituição, redigida por assembleia nacional constituinte criada somente pra isso. Tenho ouvido que nossas instituições democráticas estão funcionando. Que democracia é esta? Que estado de direito é este? Boa parte do legislativo (que é estado) acusado de toda sorte de crimes, no executivo, idem. Como explicar que somos uma democracia se quem deveria poder prender, está preso porque delinquiu; quem deveria vigiar mancomuna-se com o vigiado e lesa o bem tutelado; quem deveria proteger, mata. Como explicamos tudo isso para aquele cidadão comum, simples, que se vê cada vez mais oprimido pelas mazelas que não criou diretamente?
Esse cinismo tem que acabar. Temos que ser uma democracia de verdade, mas, antes de tudo, temos que ser autenticamente um estado de direito. Nosso “livrinho”, de tanto ser estuprado, morreu. Precisamos de um novo.
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