Se cara de pau fosse esporte olímpico, nossos governantes seriam medalhistas de ouro. Por séculos!

Na última sexta, juro, tentei deixá-los em paz. Estava finalizando o dia quando leio a notícia que o governo fluminense decretara “estado de calamidade pública”. Comecei a ler o decreto e tinha a certeza que algum grave desastre natural ou humano poderia ter acontecido. Talvez o novo túnel tivesse desabado, uma ressaca varrido toda a orla, o Cristo Redentor despencado morro abaixo, sei lá…

Sim, meus pensamentos corriam nessa direção porque são os desastres, desse contorno, que podem autorizar a decretação de tal estado.

Nada.

Enquanto leio as motivações do decreto, sem que houvesse motivo jurídico claramente suscitado, percebo que o mesmo entende que o desastre que se avizinha é o das contas. Reparem que não há um único dispositivo legal destacado no decreto para embasá-lo.

Inegável que as contas fluminenses são calamitosas, já há muito tempo, mas não me lembrava que isso poderia autorizar tal atitude.

Duvidei do que aprendera até hoje. Diante dessa dúvida, não aguentei, e fui ler o texto normativo sobre o tema.

Bingo! Estava certo. O decreto 7.257/10, diz o seguinte:

“Art. 2º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

(…)

II – desastre: resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais;

(…)

IV – estado de calamidade pública: situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido;”

Primeira Prova da Olimpíada: Salto com vara sobre conceito jurídico. Medalha de Ouro: governo fluminense.

Sim, saltaram sobre conceito de estado de calamidade pública. Criaram o conceito de estado de calamidade de contas públicas. Respeito ao Direito zero, criatividade malandra 10. No entanto, não pensem que não há uma razão. Sempre há. Não tem “sem querer”. O texto do decreto 7.257/10, em seu capítulo terceiro, prevê a possibilidade de ajuda do governo federal, liberando recursos, para atender à calamidade. Basta que o governo federal reconheça a condição calamitosa decretada pelo ente federado onde ocorreu o desastre.

Bem, alguém pode dizer que a situação no Rio é desastrosa, calamitosa, já há muito. Tenho que concordar. Só a reforma do Maracanã já foi alvo de 22 processos no TCE/RJ. E tem muita coisa mais. São governos e seguidos governos sem nenhum respeito à lei de responsabilidade fiscal com total condescendência do TCE. Só podia acabar em desastre, em calamidade. Mas deveria terminar em prisão, inelegibilidade etc.

No entanto, não acabou.

Tem mais: a notícia que circulou dá conta de que o decreto fluminense veio após uma reunião do governador do Rio em exercício, Francisco Dornelles, o prefeito carioca, o Ministro da Fazenda e o Presidente da República. Segundo os periódicos, tudo foi feito com absoluta ciência e anuência do governo federal. O apoio federal se traduzirá na liberação de recursos de aproximadamente R$ 3 bilhões, via medida provisória que será publicada no dia 20.

Segunda prova olímpica: Tiro ao alvo constitucional – Medalha de Ouro: Governo Federal.

Diante desse apoio comecei a me questionar: qual a razão dessa “ajuda” federal? Estados em dificuldades (e não são poucos) podem usar a mesma “vara” e tentar saltar também…

Fui ler o “livrinho”. Nossa Constituição Federal, em seu art. 34, diz o seguinte:

“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

(…)

III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;

(…)

V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que:

  1. a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
  2. b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;

(…)

VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

(…)

  1. b) direitos da pessoa humana;

(…)

  1. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)

Não são poucos os dispositivos constitucionais que poderiam ser invocados para se decretar uma intervenção federal no Rio. Mas quero chamar a atenção para o inciso VII. E por quê? Fácil. Basta ler o artigo 36 do “livrinho”:

“Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:

(…)

III de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

(…)

  • 3º Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembleia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade.
  • 4º Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal.”

Notem que no caso do inciso VII do art. 34, quem pedirá a intervenção será o Procurador Geral da República, via representação dirigida ao STF. O Executivo Federal fica de mãos atadas se isto ocorrer. O Presidente nada pode fazer. O Rio vem há muito incorrendo em tais infrações.

Como atual Procurador Geral da República anda meio “rebelde”, pedindo prisões de gente muito graúda ligada ao atual Governo, diante do caos instalado no Rio, não seria surpresa se o fizesse.

E se o fizesse o Presidente ficaria em uma “sinuca de bico”. Sinuca não é esporte olímpico.

Intervir num estado de um aliado, às vésperas da Olimpíada não seria bom…

Todavia, o Presidente, que conhecesse bem o “livrinho”, anteviu o movimento, tal qual um enxadrista. Xadrez também não esporte olímpico. Mas esgrima é, touché!

Não creiam em coincidências. Foi tudo pensado. O Rio decreta a calamidade (de contas) pública(s), o governo federal finge que não percebe que não é a letra da norma mas libera o dinheiro. Deu-se um jeito. Outro jeito, bem brasileiro. Demais estados, se cogitarem em fazê-lo, serão alertados que tudo foi feito, como foi feito, em razão das olimpíadas. Pronto, resolvido.

No entanto, o que fica evidente, é que nosso “livrinho” tomou mais um golpe. Ainda não é um ippon, porém ficaremos esperando que seja? Precisamos debater, com seriedade, uma nova carta constitucional. Chega de golpes, de malandragens!

PS – Dúvida que não cala: Cadê o MP fluminense?

Marcus Vinicius L. Ramos Gonçalves

Sócio da Bertolucci e Ramos Gonçalves Advogados.Prof. Convidado da FGV-RJ. Prof. do Insper. Presidente da Comissão de Estudos em Comunicação da OAB/SP, Presidente do ILADEM (Inst. Latino-Americano de Defesa e Desen. Empresarial)

mvgoncalves@brgadvogados.com.br

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